Pular para o conteúdo principal

Postagens

OBRA-PRIMA DO DESAMOR

  Primeiro, ele riscava palavras no ar. Rabiscos sonoros, pontas afiadas: “Você não serve! Você não sabe! Você não é nada!” Era só o lápis, seco, riscando o papel frágil dela.   Depois, afinou o traço. A dor corroía por dentro. Olhos murchando. Espelho ficando opaco. A mão dele não encostava, porém, apagava tudo a seu redor.   Vieram os cortes no orçamento. Contas bloqueadas. Sapatos vendidos. Liberdade empenhada na casa de penhores do controle. Era carvão queimando nas mãos delicadas da esperança.   Por fim, o golpe. Não mais rascunho. Não mais erro de traço. Era a moldura pronta, o sangue espesso, o silêncio assinado no canto.   E chamaram de amor. E chamaram de destino. Mas era só o quadro final de uma obra que nunca deveria ter existido.   Criado em : 11/8/2025 Autor : Flavyann Di Flaff
Postagens recentes

À SENHORA DE MUITOS NOMES

  Eu nasci à beira de um rio que sussurra segredos ao mar. Era ainda menina, batizada com devoção: Nossa Senhora das Neves, fé em forma de nome, promessa em altar de pedra. Depois, vestiram-me de Filipéia para agradar a um rei que nunca me viu. Mudaram-me de novo: Frederica, como se minha alma pudesse ser enlatada nos moldes da coroa estrangeira. Mas resisti! Cresci entre tambores, missas e feiras, nas ladeiras quentes onde o barro moldava sonhos e a brisa do Atlântico espalhava liberdade. A cada nome que me davam, algo em mim se preservava. Porque sou terra de mistura — não me dobro fácil, nem me deixo apagar. Veio a República, e com ela o luto travestido de homenagem. Mataram João Pessoa — disseram que era mártir político, herói civil. Mas há quem jure que foi paixão, honra ferida, sangue derramado por ciúme e vaidade. Seja qual for a verdade, ergueram meu novo nome como um brasão: João Pessoa, sem me perguntar se eu queria esquecer que um dia fui Paraíba do Norte, nome que m...

TURMALINA PARAÍBA

  Ela chegou como quem rasga o tempo — turquesa viva no meio da multidão opaca. Não cabia no espelho dos olhos alheios — Janelas d’alma, nem nos moldes preestabelecidos, nem nos rótulos costumeiros.   Brilhava nas entranhas da terra, rara como o verde que escapa das marés, como o azul que remete ao céu. Feita de cobre, de ouro e de manganês, ela reluzia, fulgurava.   Turmalina de alma líquida, impossível de forjar ou domar. Não era ornamento — era revolução lapidada de um progresso ulterior.   Como planta que desafia o chão nordestino, ela também brotou onde não se esperava: no interior, no silêncio, com a força de ser e não se dobrar.   Não se vendia. Era descoberta. Era garimpo de si.   Seu brilho não vinha da luz — mas do que nela resistia, profundo, visceral, feminino ancestral.   É joia-mulher e é paraibana: gema que não aceita cópia, nem descaso, nem submissão.   Criado em : 29/7/2025 Autor : Flavyann Di Flaff ...

PIETRO

  Mal soou o gallicinium e já negou a força criadora por consecutivas três vezes. E por seis vezes, o mundo julgou até condenar aquele que o quis desafiar. A negação fadada foi uma carga pesada, difícil demais de carregar. Passada a terceira vigília, a consciência retornou. A vida parecia não ter mais sentido, mas o cotidiano insinuava o contrário, bastava apenas acreditar, torná-lo verdadeiro e reacender a força dentro de si para cumprir a missão predestinada.   Criado em : 29/7/2025 Autor : Flavyann Di Flaff

ENTRE O SIGNIFICADO E O ENTENDIMENTO

  A palavra é ponte invisível, líquida e viva, que escorre entre a alma que sente e o ouvido que escuta. Ela nasce silêncio e se faz rio — desliza pelas margens do não dito, buscando abrigo no outro. É água que molda, que limpa, que inunda — e, às vezes, afoga. Preenche o vão entre o que se quer dizer e o que se pode compreender, dançando entre sentidos, escavando cavernas no coração de quem a recebe. Há palavras que curam, outras que cortam — mas todas carregam em si o dom de alcançar. E nesse espaço entre o que se pensa e o que se entende, a palavra é gota, é mar, é espelho — reflexo do que somos quando ousamos dizer. Criado em : 27/7/2025 Autor : Flavyann Di Flaff

RESISTIR

  Quando as chamas da ancestralidade findaram, afundou na mais completa escuridão, pois não criara a sua própria luz. Assim, tempos sombrios se instalaram em sua existência, gerando uma premente impotência. Não se sabe o quanto suportará, mas há de ser forte, enquanto a luminosidade da esperança não brotar por entre as frestas de seu melancólico ser, fazendo-o renascer para além das aparentes dificuldades externas.   Criado em : 26/7/2025 Autor : Flavyann Di Flaff

ALICIADORES DA REBELDIA

         Nasce no asfalto quente, entre gritos roucos e cartazes mal impressos, o suspiro inaugural de um movimento popular. É frágil, mas feroz feito chama acesa em palha seca. Ninguém lhe dá ouvidos; zombam de sua urgência, ignoram sua fome de justiça. É criança rebelde pulando cercas, derrubando muros com palavras – ferramentas de resistência.           Mas o tempo, esse velho sedutor, vai dando-lhe forma. E o que era sopro, vira vendaval. Ganha corpo, gente, força, rumo. A praça se enche. Os gritos, antes dispersos, agora têm coro, bandeira, ritmo, batida. E aí, justo aí, quando a verdade começa a doer nas vitrines do poder, surgem os abutres engravatados — partidos, siglas, aliados, palanques — com seus sorrisos de vitrine e suas promessas de espelho, instrumentalizam o movimento para capitalizar recursos e influência política, fazendo-o perder a essência.           Chegam mansos, como quem só...